Jefferson, o sôfrego escritor meia-boca de um conto só

    Fazia um inverno infernal neste inferno de cidade. Não sabia nem o que fazia ali, mas continuava ficando, e ia ficando e maldizendo e refletindo que o inferno não é quente, mas este frio fino, malcheiroso, apertado e encolerizante que fazia agora. Tinha também algumas outras certezas que não interessam a este texto. Este é um texto sobre outra coisa.
    Pediram-no que escrevesse um romance, daqueles longos, complexos, comerciais-mas-nem-tanto. Não conseguia. Já tentara a máquina, o computador, o papel, meditação guiada e trocar as meias furadas e incensos e chás e tudo o mais. Nada aliviava o frio. Saiu para comprar cigarros, mas nem fumante era.
    O vendedor era um cara miúdo, gorducho-mas-não-muito, mal encarado. Tinha o nariz torto para o lado esquerdo, sem nenhuma cicatriz, isso dava raiva. Nariz torto tinha que ter história. Nariz torto sem cicatriz era um cachorro que caiu da mudança, um erro, um desperdício de poeira espacial, um sei-la-o-quê.
    Achou os cigarros caros demais mas pagou mesmo assim porque era assim que levava a vida sem pausa nem vírgula nem reflexão nem nada. Mas aí veio o romance, o romance maldito, amaldiçoado, o romance cruel, que lhe esfregava a cara na fedorenta realidade de sua incompetência. Era um escritor meia-boca. Fazia rimas e contos. Rimar todo mundo rima, porra, pensava. Pra fazer crônica é só se sentar numa praça. E esse frio do cacete. Voltou à casa.
    Romance é coisa de homem sem mulher, achava. Homem que tem tempo. Mas não tinha mulher e nem romance, isso é que era o cúmulo. Tinha o tempo, o frio, as meias furadas e, agora, os cigarros que não fumava - e nem poderia, porque esquecera-se de comprar os fósforos.
    Sentia-se como um ornitorrinco bêbado, uma criatura ridícula. Sentia raiva. Raiva de todas as palavras que sabia e que agora não conseguia alinhar em forma de frase que viraria texto e capítulos e romance e livro. Entre o não-saber e o não-querer não entendia onde estava. Escrever é se denunciar, isso não queria. Mas, para ele, era também ganhar dinheiro - disso gostava. Dinheiro, noutro tempo, servia para arranjar alguma mulher bem-apessoada que dele se apessoasse de volta.
    Ali, em meio àquele cacete de frio, mulher bonita não existia.
    A vontade era de defenestrar-se, se é que isso era possível, e também não se importava se não fosse. As palavras já não lhe faziam sentido.
    Para escrever um romance teria de falar dela, mesmo que não fosse romântico, como ela também não o era. Teria que dizer algo daquele dia, daquele vinho, teria de ter algo disso. Um bom romance é um dedo na garganta, é a mensagem não dita. Um bom romance tem alguma coisa deste frio infernal.
    Um romance tem de ser paciente, mas insistente, tem de ter alguma inquietude em meio à calma. Um romance precisa de um punhado de alma, não se faz um romance sem alma. E que diabo era isso de alma, nesta cidade infernal, com cigarros infumáveis e palavras indizíveis, que diabo seria isso.
    Então foi brotando o romance.
    Um romance doloroso, com algo de sofrido em si. Não era como se contasse, era como o romance contasse a si mesmo. Foi indo e indo e continuava indo e falava das pernas, e do cheiro, e daquele vinho, e do adeus, essa parte foi foda, o adeus, sempre era foda, era maldito, mas foi indo, teve o adeus, teve depois do adeus, teve todas aquelas coisas, a saudade, a mudança, a cidade ingrata, a abominável cidade, o vendedor de cigarros filho da puta dono de um nariz torto sem história, nisso eles não se pareciam, história ele tinha, disso se orgulhava, era uma história ridícula, um romance meia-boca e mal escrito, mas era dele. E foi indo.
    Este era um texto sobre uma outra coisa. Sobre os cigarros apagados, sei lá, talvez fosse.
    Mas não foi. Foi um texto sobre ela, outro.
    Dela brotou-lhe o romance.

Este texto foi escrito com a colaboração de amigos: cada um enviou uma palavra que foi carinhosamente escondida por aí. Obrigada, pessoal. Vocês me pagam.

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