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  Guardo este blog com um carinho especial pela pessoa que fui e pela pessoa em que me transformei, certa de que aqui estão gravados pequenos trechos de sentimentos sinceros que há muito me acompanham.

Um grito silencioso

Passam por mim e não veem. Me olham e não me enxergam. Não me ouvem. Não me conhecem. Não me sentem. Não se aproximam. Não sou o vento. Não sou Amor. Não sou partículas em suspensão. Não sou uma campanha publicitária na internet. Não tenho cor. Não tenho nome. Não sou cidadão. Não sou uma frequência de rádio. Não sou barulho. Não sou vida. Dia desses perguntaram quem eu era - curioso, não?! Sou o canto da sarjeta. Sou 16 milhões de brasileiros. Sou moeda quente. Sou um olhar pelo canto do olho. Sou 3,1% dos jovens deste país. Sou o esquecimento dos políticos. Sou a desigualdade social. A concentração de renda. Sou pão velho. Roupa furada. Uma ajuda, moça, um prato de comida, por favor? E lá se vai a moça fingindo que não é com ela. Que não ouviu direito. (Só mais um bêbado vagabundo!) Sou doente terminal há mais de 20 horas na sala de espera. Sou falta de saneamento básico. Sou sistema educacional precário. Sou um país inteiro. Sou filho de uma nação [fantástica?]. Sou carna...

Ode ao salto agulha

O problema não era a unha do dedão meio descascada no cantinho esquerdo. Talvez o problema fosse a ponta dupla do cabelo e a hidratação que ficou por fazer - mas acho que não. O erro não estava no pneuzinho da cintura. Academia semana que vem, prometo! Talvez fosse a TPM. E a conversa no ônibus daquelas duas moças de salto fininho. Você vai pedir pra voltar? Lógico que não, né, amiga? Onde já se viu? Mulher correr atrás de homem?! Ele que venha atrás... Isso aí, querida, porque você sabe; vai que ele se acomoda e aí já viu, né? Pois é, vou ficar igual a Marcela, que vai atrás do namorado em todos os cantos. Tem que se dar o valor! O problema devia ser o calor. O problema talvez fosse a porcaria do celular que não quer colocar aspas e o texto que sai meio pulando pra fora e as coisas na cabeça o trabalho da faculdade a falta de virgulas a falta de acentos a sobra de preguiça o almoço corrido o nao que ouviu semana passada a menstruaçao atrasada cade os acentos do meu celular? ...

Suicídio

Saiu como um trovão a última frase do livro. Pele pálida, suor descendo a linha do nariz, contornando a boca. Ah, a boca. Pinga no papel. "Mais um", foi o que pensou no momento. Na penumbra do quarto quente e vazio, a silhueta cravada de ossos. Magra como a noite escura, bordada de cicatrizes que o vento encarregou-se de trazer como se fossem estrelas. Mais uma gota de suor brota no topo da testa, ainda em meio aos fios ralos do cabelo, que insiste em cair. Acaricia a penugem da sobrancelha, irrita as pálpebras, pinga do olho, quase uma lágrima. Termina o caminho levemente como se não houvesse culpa nas entranhas do sal que carregava. Não há necessidade de limpar. "Mais um". Usava para escrever uma máquina como quem quer esconder a cena do crime. Recusava-se a encostar no papel - palavras cortam. Palavras sujas cortam. E cortavam-na por dentro e amarravam suas vísceras. Palavras são doenças incuráveis. A mão descascada tremia e fazia tilintar os ossos de vidro ...

Gosto.

De quem não tem hora marcada. De quem causou a bagunça. De quem não repara nela. De quem ajuda a arrumá-la. De brincar descalço. De horário de verão. E cheiro de livro velho. De cor. De quem não entende e pergunta de novo. E de novo. Do que é novo. Do que é eterno. Do que nunca vai ser. De quem diz pra nunca dizer que nunca. De quem não sabe cozinhar. De quem sabe. De quem conta histórias. De histórias. De música gostosa. De dia ensolarado e gosto de azul. De chuva, também. Das pessoas que entram sem bater. Que não tiram o chinelo na porta e deitam no sofá e trocam o canal da TV. De quem liga sábado às 4 da tarde só pra ter certeza se. Vontade de. Como é que tá? De viagem longa e abraço apertado e mapa do caminho e reencontro. De quem volta. De quem entende que tem que ir embora. - Já diria o poeta que amar é voltar, mas, amar mesmo, amar muito, é partir. O bolo de aniversário. As alegrias e as tristezas e o barbante que a gente guarda meio abarrotados na gaveta de col...

O grande mito do "felizes para sempre"

"A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca e que, esquivando-nos do sofrimento, perdemos também a felicidade." Amo Drummond e não é de graça - ele faz por merecer. Excessos literários e purpurinas à parte (coisa rara de se ver por aqui, confesso), venho apresentar minha opinião sobre o grande fantasma do felizes para sempre que a sociedade nos enfia pela garganta e a gente acaba se deixando engolir. Então se prepare, porque lá vem. Delete do pensamento a sensação de que amor só é de verdade quando se mistura com paixão e envolve duas pessoas.  Não é assim. Aliás, esse tal amor carnal é uma das variações do Amor Maior (sim, em letra maiúscula!) e não, ele não é o segredo da felicidade. Esqueça os filmes e os livros e a mídia e toda a ideia de que o futuro traz felicidade. Ele não traz.  O para sempre também não é o segredo da felicidade. E devo mencionar que...

Carta à surpresa

Das milhões de coisas que poderiam passar pela minha cabeça quando o avião decola, a que mais me fascina é olhar para as luzes e imaginar o que estariam fazendo as pessoas debaixo delas. Estou olhando pela janela agora e caramba!, você iria adorar esta vista. Iria rir comigo dos pontinhos acesos, me perguntaria quantas pessoas eu acho que existem lá embaixo, se elas estão se arrumando para alguma festa e, caso estejam, se ainda dá tempo da gente descer e ir junto. Acho que felicidade é também um pouco disso: deixar-se surpreender. A gente vai perdendo essa capacidade com o passar do tempo e é por isso que queria você aqui agora. E que dorzinha no ouvido, hein? Você estaria reclamando dela agora. Talvez chorando. "Tô com fome". Essa ansiedade de quem não tem hora marcada pra nada, mas mesmo assim quer tudo ao mesmo tempo agora e para o último segundo. A gente vai perdendo isso também. Se eu pudesse devolver o livro que ajudava a realizá-lo mais rápido... Aliás, se eu pudess...