Um grito silencioso


Passam por mim e não veem. Me olham e não me enxergam. Não me ouvem. Não me conhecem. Não me sentem. Não se aproximam.
Não sou o vento. Não sou Amor. Não sou partículas em suspensão. Não sou uma campanha publicitária na internet.
Não tenho cor. Não tenho nome. Não sou cidadão. Não sou uma frequência de rádio. Não sou barulho. Não sou vida.
Dia desses perguntaram quem eu era - curioso, não?!
Sou o canto da sarjeta. Sou 16 milhões de brasileiros. Sou moeda quente. Sou um olhar pelo canto do olho. Sou 3,1% dos jovens deste país.
Sou o esquecimento dos políticos. Sou a desigualdade social. A concentração de renda. Sou pão velho. Roupa furada.
Uma ajuda, moça, um prato de comida, por favor? E lá se vai a moça fingindo que não é com ela. Que não ouviu direito. (Só mais um bêbado vagabundo!)
Sou doente terminal há mais de 20 horas na sala de espera. Sou falta de saneamento básico. Sou sistema educacional precário.
Sou um país inteiro. Sou filho de uma nação [fantástica?]. Sou carnaval o ano todo. Sou promoção no preço da cerveja - e 6% a mais na gasolina! Mas eu não era reserva de petróleo? Eu não era progresso?
Era pra eu ter sido igualdade. Não era pra ter sido preconceito.
Sou a escória da sociedade. Sou dormir na chuva. Sou frio no inverno. Sou indiferença. Sou sujeira - cadê a vassoura?
O grito que ninguém quis dar - um silencioso ruído em meio à selva de concreto. Sou o piar dos pneus, o rugido das buzinas. Sou animal. O bicho homem.
Sou boca de urna.
Sou denúncia social num blog qualquer - ninguém vai ler [e nem eu].
Sou cada um dos brasileiros e ao mesmo tempo não sou ninguém.
Sou miséria.
Dia desses perguntaram quem eu era - curioso, não?!
Apressei-me em responder, mas o relógio cacarejou.
E foram embora.
Sempre vão embora.



"Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem."

(Manuel Bandeira)

Um obrigada enorme e um beijinho na testa ao lindo do Samuel Ramalho pela inspiração.

Comentários

  1. "Sou um olhar pelo canto do olho. Sou 3,1% dos jovens deste país.
    Sou o esquecimento dos políticos. Sou a desigualdade social. A concentração de renda. Sou pão velho. Roupa furada."
    Esse texto é um grito de todos que direta ou indiretamente sofrem nesse país de superiores, que não olham pra quem constrói realmente com suor e trabalho.
    "Era pra eu ter sido igualdade. Não era pra ter sido preconceito."
    Emocionei Carol!

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    1. Não é sadio e não deveria ser normal a facilidade que nós temos para nos acomodarmos frente à situação do país. Que bom que se emocionou!!
      Ainda rezo para que um dia a situação mude - eu já mudei, espero que você também.

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  2. Belo texto!!Nos faz pensar e repensar nossos atos e atitudes!!
    Uma ajuda, moça, um prato de comida, por favor? E lá se vai a moça fingindo que não é com ela. Que não ouviu direito. (Só mais um bêbado vagabundo!)
    Essa parte foi a que mais conseguiu traduzir a realidade!!

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  3. Que texto lindo, que lindas palavras. Não conhecia esse blog, e pelo visto, a partir de hoje serei leitor assíduo Parabéns!

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    1. Fico muito contente! Volte sempre, a casa está de portas abertas - e eu prometo novidades por aqui! hahaha
      Muito obrigada!

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  4. Texto que nos faz pensar muito!

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  5. Parabéns pelo texto, Carol, muito bacana! Às vezes nos esquecemos das pessoas que são subjugadas desde o nascimento. Nas palavras de Gabriel, O Pensador ignoramos "o resto do mundo".

    "Eu não tenho nome
    eu não tenho identidade
    eu não tenho nem certeza se eu sou gente de verdade".

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  6. Carolina, um dos textos mais fortes que já li na blogsfera. Meus parabéns!

    Beijos,
    Arih (http://www.eppifania.blogspot.com)

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  7. Passei por aqui lendo, e, em visita ao seu blog.
    Eu também tenho um, só que muito simples.
    Estou lhe convidando a visitar-me, e, se possível seguirmos juntos por eles, e, com eles. Sempre gostei de escrever, expor as minhas idéias e compartilhar com as pessoas, independente da classe Social, do Credo Religioso, da Opção Sexual, ou, da Etnia.
    Para mim, o que vai interessar é o nosso intercâmbio de idéias, e, de pensamentos.
    Estou lá, no meu Espaço Simplório, esperando por você.
    E, eu, já estou Seguindo o seu blog.
    Força, Paz, Amizade e Alegria
    Para você, um abraço do Brasil.
    www.josemariacosta.com



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  8. O individualismo corrói a humanidade de dentro para fora. Todos procuram um agrado a si próprio. Esse agrado é um sentimento prazeroso que se assevera na psicologia do "do it yourself". A consequência é a fábula absurda de nossas vidas. Uma fábula na qual todos buscam furnas de prazeres. Mas não satisfeitos, transportam esse sentimento para além dele mesmo, buscando esgotá-lo. Então destrói-se o homem e o que está para além dele: seus sentimentos, seus desejos, seus objetos, suas coisas, suas ideias.

    Ah! Tome cuidado ao iniciar uma frase com pronome oblíquo. A gramática orienta o contrário. Percebi isso aqui:
    "Me olham e não me enxergam.". Primeira linha.

    Um abraço!

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    1. Seus comentários sempre me inspiram. Dá vontade de roubar a autoria!
      O pronome foi proposital, como outros milhões de desvios que, se parar para analisar, você vai encontrar por aqui. Abre parêntesis: alguns não são propositais hahahahah. Fecha parêntesis.

      Obrigada pelo carinho!

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