Carta à surpresa

Das milhões de coisas que poderiam passar pela minha cabeça quando o avião decola, a que mais me fascina é olhar para as luzes e imaginar o que estariam fazendo as pessoas debaixo delas. Estou olhando pela janela agora e caramba!, você iria adorar esta vista. Iria rir comigo dos pontinhos acesos, me perguntaria quantas pessoas eu acho que existem lá embaixo, se elas estão se arrumando para alguma festa e, caso estejam, se ainda dá tempo da gente descer e ir junto.
Acho que felicidade é também um pouco disso: deixar-se surpreender. A gente vai perdendo essa capacidade com o passar do tempo e é por isso que queria você aqui agora.
E que dorzinha no ouvido, hein? Você estaria reclamando dela agora. Talvez chorando. "Tô com fome".
Essa ansiedade de quem não tem hora marcada pra nada, mas mesmo assim quer tudo ao mesmo tempo agora e para o último segundo. A gente vai perdendo isso também. Se eu pudesse devolver o livro que ajudava a realizá-lo mais rápido... Aliás, se eu pudesse não tê-lo comprado! Você não o teria lido mesmo. Iria preferir uma revista com muitas gravuras. "Já tá chegando?"

STOP! O mundo parou e eu não sei se foi o automóvel, essa aeronave, ou se a turbulência foi em mim. Talvez não tenha parado e sim acelerado. Devem ter trocado a bateria do relógio por uma mais potente (essas tecnologias de hoje... Você não entenderia e eu teria de explicar). Talvez mudaram os calendários da forma com que convinha no momento, diminuíram os dias, correram as horas - adiantaram o coitado do ponteiro. Agorinha mesmo era ontem e você ainda estava aqui, não entendi o que aconteceu, o tempo passou e eu não vi. Fui comprar pão dia desses, tive de passar na loteria antes para pagar umas contas e não me surpreendi. O cachorro latiu e não me assustei, o palhaço caiu e não sorri. Você não teria gostado de ver essa cena. Teria pedido pra brincar de novo no pula-pula e "eu sei que já pulei muito, mas o pé ainda não tá doendo!" e depois a gente tomaria sorvete e teria sido o melhor dia de nossas vidas.
Acreditaria se eu lhe contasse que o ouvi? Me gritando do fim da rua, perto do campinho de jogar queimada, ver o por-do-sol e se surpreender. Fingi que não era comigo porque ainda havia muito o que fazer, mas olha: te prometo, quando essa aeronave descer, vou direto comprar uma revista pra gente, das bem coloridas, e ver se você volta.
E volta, viu? Acho que ainda dá tempo da gente descer e ir à tal festa.



Um feliz dia das crianças a quem ainda se deixa surpreender e, muito mais do que isso, mais surpresas aos que já deixaram de fazê-lo. Aprendam com as crianças: alegrar-se é se deixar encantar.

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